Alexandre Oliva
É impressionante como ainda tem gente que nem pensa duas vezes antes de trazer um cavalo de madeira para dentro das muralhas da cidade, só porque o cavalo é dado. Como tiveram o infortúnio de descobrir os troianos, o presente de grego vinha com uma surpresa. Tivesse casca de chocolate, ao invés de madeira, poderia muito bem se chamar Kinder Hippo, ainda que os “soldadinhos” já viessem, digamos, armados e não estivessem ali para brincadeiras.
Presentes semelhantes vêm sendo oferecidos a cidades-estado em todo o mundo. São serviços ou software privativos, sem custos significativos para o doador, apesar dos vultosos valores nominais. Tal qual cavalo de madeira, aparentam não onerar quem os recebe, mas escondem segundas intenções inconfessáveis que põem em risco a soberania, a segurança e a economia dos estados que os trazem para dentro de suas muralhas virtuais.
Hoje em dia, cavalos e-lênicos não trazem mais soldados de carne e osso em seu interior, mas sim e-stratiotis, soldados eletrônicos. Alguns são espiões, que passam a receber e monitorar as comunicações internas da administração pública. Já imaginou, as comunicações estratégicas das forças armadas ou das relações exteriores nas garras eletrônicas de uma empresa que mantém para o governo estadunidense uma porta dos fundos aberta, descoberta e utilizada pelo governo chinês? Os troianos dos tempos de Helena tiveram suas próprias muralhas abertas pelos stratiotis infiltrados para o exército inimigo entrar, enquanto neotroianos ingenuamente usam os e-stratiotis infiltrados como mensageiros, que diligentemente armazenam cópias das mensagens no quartel general, para deleite de quem tem livre acesso pelos fundos. Não importa quão quente ou G.nial um serviço desses possa parecer: é fria, é do mal. Não caia nessa rede.
Alguns neotroianos escolados não mais convidam e-stratiotis a espionar as mensagens da administração pública, porém escambam a atenção, a privacidade e o futuro de seus docentes e discentes pelas algemas digitais que vão mantê-los, docentes e discentes, aprisionados, dependentes e impotentes. Duplo ganho para o ofertante, dupla perda para as vítimas. E quem deu a canetada, nada? Às vezes, nada! Outras, mergulha, voa de primeira classe, vai a festas, sem nem falar nas próximas eleições ou no próximo emprego. Deita-se sobre os louros de um problema mal resolvido, que custará às vítimas anos de análise (de sistemas?) para superar.
Um exemplo são vários estados e municípios que têm aceito as ofertas de serviços de correio eletrônico e anúncios comerciais para alunos e professores da rede (já escrevi essa palavra acima, não?) pública, direcionando os anúncios através da inspeção do conteúdo das mensagens eletrônicas.
Outros aceitam hipposoftware gratuito (afinal, os certificados de licença oferecidos têm custo de produção praticamente nulo) para adestramento de alunos, de modo que, ao chegarem ao mercado de trabalho, por causa da decisão que já tomaram por eles, tenderão a continuar usando as mesmas algemas, porém pagarão caro por esse discutível privilégio. Chama atenção a semelhança com a estratégia adotada por narcotraficantes até hoje, e por vendedores de outras drogas ainda legalizadas, que antigamente ofereciam gratuitamente seus bastões fumacentos a futuros dependentes nas saídas das escolas. Hoje, lamentavelmente, a escola traz arapucas semelhantes para dentro de suas muralhas, fazendo até convênio com fornecedores para que, valendo-se dos portões abertos, invadam, conquistem e destruam a educação, subjugando gerações inteiras.
Não seria difícil entender a aceitação desses abusos, mesmo na ausência de corrupção: os invasores usam de ardis enganosos para derrotar seus adversários e distorcer a história que escrevem, embelezando as feias estratégias bélicas. “Estratégia, do grego strategia”, intercede o Capitão Nascimento, sem mencionar (amo demais a vida para escrever “sem saber”) o quanto essa raiz pervade o vocabulário marcial helênico: stratiotis (soldado), stratiotika (militar), strategos (general)...
Na história assim escrita, posam, como heróis, crudelíssimos strategos de altas patentes e baixos golpes, como o Strategos Failure Reading e o Strategos Protection Fault, aquele da mortal Blue Screen of Death. Outros, valorosos e íntegros, como o Strategos Public License de GNU, grande craque do copyleft, podem ser pintados como vilões, por tão somente cumprirem seu papel heroico de defender os cidadãos das ameaças dos invasores. Ao estudar tão distorcida história, não surpreende que os leitores mais inocentes confundam heróis com heroína, craques com crack. “Lance a primeira pedra aquele que estiver livre!”, desafiam os invasores detrás da droga da cortina fumacenta. E tome injeção de dependência! “De graça, até injeção na testa!”, propõem. Que droga, né?
Assusta que se julgue razoável aceitar sem licitação esses presentes de grego, causadores de dependência, apenas porque sua primeira dose parece grátis. A lei de licitações não invalida o princípio constitucional da impessoalidade: dispensar de licitação um fornecedor quando outros poderiam oferecer produtos ou serviços similares pelo mesmo preço (aparentemente grátis) ou até preços menores (grátis e Livre, sem custos ocultos, ou até pagando para oferecer o serviço) falha no cumprimento desse princípio.
Vale ainda questionar, já que os inocentes que recebem e aceitam as ofertas parecem não se perguntar, por que raios companhias com fins de lucro ofertariam produtos gratuitos. Afinal, quando a esmola é muita, até o santo desconfia! Mas inocente nem sempre é santo, né? Valei-nos, São IGNÚcio!
Que interesses poderia ter qualquer dessas companhias em espionar as comunicações internas da administração pública? Em armazenar os dados da administração pública, de professores e estudantes em formatos e códigos que só essa má companhia saiba decodificar? Em tornar funcionários públicos, mestres e alunos dependentes de suas ferramentas? Em evitar, mediante dumping, o avanço de alternativas? Em usar esses “cases” para vender o mesmo problema a outros? Em usar a dependência assim estabelecida para cobrar daqueles que caíram no conto e descobriram, tarde demais, que só a primeira era grátis? Em usar uma pequena fração dos lucros assim auferidos para pagar as multas das condenações em processos anti-truste?
“É uma cilada, Bino!”
Parece até refilmagem de um “hit” das madrugadas de TV aberta da minha adolescência: “Pague para Entrar, Reze para Sair”. A diferença da adaptualização é que, na versão para .tv .net, a entrada do parque de diversões é grátis, atraindo ainda mais vítimas para o monstruoso vilão realizar suas fantasias pervertidas e desejos perversos.
Lembrem-se, .gov, .mil e .edu: alguém .com interesses e .com alguma estratégia para recuperar o investimento inicial da primeira grátis sempre estará envolvido nessas propostas indecentes. Tanto nos filmes como na vida real, o que ocorre com as vítimas poderia ser descrito muito bem usando termos de cunho sexual. Afinal de contas (que acabam sendo muitas), a palavra orgia também tem origem grega: festins sexuais a Dionísio, importado para Roma como Baco, deus do vinho e dos bacanais. (Não fique na mão! www.bacanais.orgy: festas quentíssimas, com muitos agrados para romanos, gregos e troianos! Acesse djá!)
Deu (ou deram?) para entender por que cautela e licitações são essenciais, mesmo quando o produto ou serviço parece dado? Ao contrário da oferta de Software Livre ou de serviços que respeitem a soberania e a autonomia dos clientes, inviabilizando estratégias de captura e aprisionamento que garantissem lucros obscenos posteriores, software e serviços privativos geram monopólios e impõem custos, ocultos como os stratiotis aqueus armados até os dentes no interior do cavalo de madeira dado a Tróia. São custos de saída e distorções de mercados futuros em razão de exclusividades (monopólios, artificiais ou não) na prestação de serviços sobre o presente de grego ofertado, que devem ser considerados parte de seu custo para fins licitatórios.
O princípio da impessoalidade é o calcanhar dos Aquiles invasores, pois vai bastante além das insuficientes práticas licitatórias atuais. Deve ser cumprido, ainda que, segundo o ditado, de cavalo dado não se olhem os dentes. Como alerta, ficaria melhor: de cavalo dado não se vêem os dentes. Não significaria que os dentes (ou quaisquer outras armas) não estivessem ali, nem que não se os deveriam procurar. Seria, ao contrário, um lembrete de que podem estar escondidos, e de que, conforme descobriram os troianos após uma noitada de comemoração e bebemoração pela pretensa oferta de rendição dos aqueus, mordida de cavalo traidor dói que é uma barbaridade!
Copyright 2010 Alexandre Oliva
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