domingo, 17 de julho de 2011

Um debate sobre a escassez de poesia estrangeira no Brasil

Poeta laureada do Reino Unido, onde seus versos são lidos na rede escolar e a crítica lhe conferiu todos os prêmios possíveis, a escocesa Carol Ann-Duffy, sem livro publicado no Brasil, passou praticamente incógnita pela 9 Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que terminou domingo passado. Talvez a mais renomada entre todos escritores convidados, Carol foi, em Paraty, quem menos atraiu atenção da imprensa e dos leitores — o GLOBO foi o único jornal a entrevistá-la por lá (clique aqui para ler). Uma explicação possível para essa situação aparentemente contraditória pode ser encontrada na primeira palavra deste texto. Carol Ann-Duffy, afinal, é poeta. E, se em geral poetas tem menos leitores do que romancistas e contistas, essa relação é particularmente desigual no caso da recepção à literatura estrangeira no Brasil.
Enquanto a presença de prosadores contemporâneos de outros países vem se ampliando e diversificando nos últimos anos — puxada pela expansão do mercado editorial, das feiras literárias e da oferta de tradutores em outras línguas além do inglês —, as edições de poesia permanecem há anos num mesmo patamar, próximo a zero. Parece fácil justificar o marasmo argumentando que o número de leitores de poesia é reduzido no Brasil, algo que as vendas minguadas de nossos melhores poetas contemporâneos (com raras exceções) parecem confirmar. Mas nem sempre foi assim, argumenta a crítica Flora Süssekind, lembrando momentos de maior vitalidade na relação do meio literário brasileiro com a poesia de outros países.
— Basta compararmos o contexto atual com o impacto que foram para as gerações dos anos 60 e 70 as traduções de grande qualidade dos irmãos Campos, do José Paulo Paes, do José Lino Grünewald — diz.
A percepção de que as traduções de poesia estrangeira não apenas se estagnaram, como diminuiram, é endossada pelo crítico e poeta Italo Moriconi, diretor da Editora da Uerj, que estende o contraste feito por Flora para uma década mais recente:
— Tenho a impressão, bastante intuitiva, que não vivemos mais nada semelhante a um certo boom da tradução de poesia estrangeira ocorrido nos anos 80, quando ampliou-se para o modernismo clássico universal euro-norteamericano o cânone de poetas estrangeiros que tinha sido introduzido no Brasil com viés vanguardista pelos irmãos Campos nos anos 60-70 — diz o crítico, que lança em breve pela EdUerj livros de três importantes poetas estrangeiros: a austríaca Ingeborg Bachmann, o romeno Ghérasim Luca e o francês Emmanuel Hocquard, traduzidos, respectivamente, por Vera Lins, Laura Erber e Marilia Garcia. 


Críticos, tradutores e editores ouvidos pelo Prosa & Verso dizem que a escassez não se restringe aos escritores mais recentes, mas atinge também poetas consagrados após o chamado alto modernismo, por volta da metade do século XX, como o inglês Philip Larkin (o mais mencionado nas entrevistas), a argentina Alejandra Pizarnik (que só teve lançada no Brasil, pelo selo Tordesilhas, a novela “A condessa sangrenta”, menos conhecida que sua obra poética) ou o americano Charles Olson. Lembrando o impacto das traduções pioneiras feitas nos anos 1960 e 1970, a crítica Flora Süssekind argumenta que é preciso analisar a história da literatura brasileira para compreender as consequências de um ambiente literário onde a poesia de outros países tem uma presença tão tímida.
— A possibilidade de contar com o Mallarmé do “Lance de dados”, com a poesia de Cummings, de Maiakovski, isso foi determinante para que se repensasse o poema, a própria dicção, para que, aqui, um grau de exigência altíssimo se impusesse, inclusive para quem buscasse outras referências — avalia. — É claro que as revistas literárias tentam fazer isso em certa medida, mas o que me parece fundamental é que se dimensione criticamente a produção contemporânea, e a interlocução mais intensa com o que de melhor se produz em outras línguas transforma e força um movimento reflexivo sobre o que se faz aqui. Tira o eixo de consideração e avaliação do umbigo de cada grupo.
Responsável pelo catálogo de poesia brasileira contemporânea da Companhia das Letras, a tradutora e editora Heloisa Jahn cuida dos livros de alguns dos principais poetas nacionais — como Armando Freitas Filho, Francisco Alvim e Paulo Henriques Britto, entre outros. Poesia estrangeira é artigo raro no mundo inteiro, ela afirma, mas reclama que as editoras não busquem “outros parâmetros” além da lógica do mercado para guiar sua política de publicação na área:
— A linguagem da poesia é muito especial; funciona como um terra fértil que alimenta as ideias, a linguagem e a cultura dos diferentes lugares e épocas; o fato de que permaneça ilhada em seus lugares de origem (de que não circule, e não repercuta sobre outras linguagens, e não estabeleça diálogos em escala mundial) significa um empobrecimento (ou uma ausência de enriquecimento) a lamentar. 


O  poeta Paulo Henriques Britto, que dividiu com Carol Ann-Duffy a mesa “Lírica crítica” na Flip, é mais pragmático em seu comentário. 
— Há poucas traduções de poesia porque há poucos leitores de poesia — resume. — De fato, há muitos poetas de língua inglesa que mereciam ser traduzidos, para não falar nos de outros idiomas, que conheço mal. Da Inglaterra, Philip Larkin; da Irlanda, Paul Muldoon; dos EUA, James Merrill, para só citar três poetas contemporâneos excelentes, um de cada país. Importante? Sem dúvida, para quem gosta de poesia: cerca de 300 leitores no Brasil. 


Assim como Heloisa Jahn, o jornalista Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Cosac Naify, diz no entanto que o problema não é apenas brasileiro.
— De maneira geral é mesmo baixa a oferta de poetas contemporâneos estrangeiros — reconhece. — A Cosac Naify é uma das poucas que publicou alguns deles, como a portuguesa Adília Lopes, o peruano Antonio Cisneros e os franceses Michel Deguy e Nathalie Quintane. Infelizmente este problema (baixa oferta de poetas estrangeiros) se repete mundo afora. Por alguma razão misteriosa faltam leitores de boa poesia em qualquer canto. Os livros de teatro padecem historicamente desta mesma inexplicável virose (falta de editores e leitores). 


A recorrência com que são lembrados os nomes dos irmãos Campos, de José Paulo Paes ou de José Lino Grünewald, uma valorização da autoria da tradução que é menos comum quando se trata da prosa, aponta para uma condição particular das traduções de poesia, argumenta o poeta e editor Alberto Martins, da Editora 34. Para ele, a tradução de um poeta é um trabalho longo que exige uma convivência duradoura com sua obra, e não pode, ou não deveria, ser feita por encomenda, como costuma acontecer com romances e contos.
— Em grande parte acho errado encomendar tradução de poesia — afirma. — É o tipo de projeto muito enrolado, que demanda um empenho, uma paixão interna pelo poeta e longa familiaridade com a sua obra. O Paulo Henriques [Britto] ficou oito anos traduzindo Byron e depois ofereceu à Nova Fronteira. 


Martins lembra que revistas como “Sibila”, “Inimigo Rumor” e “Poesia Sempre” contribuíram nos últimos anos para a circulação de poesia estrangeira no Brasil. Dos poemas que saíram nessas publicações, ou das leituras que fizeram direto na fonte, os entrevistados para esta reportagem lembram muitos nomes ainda por traduzir, além dos já mencionados: o crítico e poeta Felipe Fortuna (para quem aliás é mais urgente incentivar a tradução de poetas brasileiros no exterior do que o contrário) cita o anglo-americano Thom Gunn e o francês Robert Davreu; Heloisa Jahn lamenta que sequer portugueses como Sophia de Mello Breyner e Ruy Belo (para os quais, é claro, não seria preciso tradução) estejam difundidos entre nós (há uma coletânea de Sophia, nada de Belo); e Flora faz uma lista longa, com nomes americanos como Louis Zukofsky, Charles Bernstein, Susan Howe, Susan Stewart, Leslie Scalapino e Lyn Hejinian, sobre quem comenta:
— Ela realiza, a meu ver, ao lado da francesa Natalie Quintane (de quem também há muito a traduzir), uma das mais belas interlocuções com a escrita e as reflexões sobre poesia e gramática de Gertrude Stein, um texto que mistura registros e opera por meio não de poemas isolados, mas de sequências poético-meditativas e, num modo reflexivo que conecta o que, na sua obra, pertenceria ao terreno da prosa, do poema e do ensaio. Ela tem, aliás, um dos melhores textos sobre ritmo que eu já li até hoje — diz, mencionando ainda o nome da belga Ruth Lasters.


Uma entrevista com a poeta escocesa Carol Ann-Duffy




Em sua apresentação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde participou de uma mesa com o brasileiro Paulo Henriques Britto, a escocesa Carol Ann-Duffy deu uma amostra da amplitude de temas e registros geralmente apontada como uma característica de sua obra. Do humor da série “The world’s wife”, em que as esposas de figuras históricas ou mitológicas (como Midas, Fausto ou Darwin) escrevem sobre seus maridos, à melancolia de “Cold”, reproduzido na capa do caderno, sobre a morte de sua mãe. A reação empolgada do público ao pequeno recital feito por ela na Flip atesta também outro traço importante da poesia de Carol, que a distingue de muitos contemporâneos seus: seus poemas, sem abrir mão da forma apurada, passam longe do hermetismo. Nomeada poeta laureada do Reino Unido em 2009, Carol é a primeira escocesa, a primeira mulher e a primeira pessoa abertamente bissexual a ocupar o posto. Em entrevista ao GLOBO em Paraty, ela contesta os críticos que chamam sua obra de “acessível” e diz que a poesia “é a música da condição humana”. 
Você é um caso raro na poesia contemporânea de poeta reconhecida pelos críticos e popular entre os leitores. Seus poemas muitas vezes são descritos como “acessíveis”. O que acha dessa qualificação? 
CAROL ANN-DUFFY: Ela não me interessa, na verdade. Um bom poema deve ser acessível na superfície, mas ter algo mais por debaixo, de modo que ele talvez não seja o que parece, ou possa ao mesmo tempo ser “acessível” e muito profundo. Gosto de usar todas as ferramentas da linguagem, todas as maneiras como falamos, do lírico ao rotineiro. Posso usar uma palavra simples ou outra que me atraia apenas pela beleza do som, mas o que tento criar, por meio da técnica, é algo de surpreendente e vivo — um acontecimento na linguagem. 
Você disse uma vez que ao escrever tenta revelar uma verdade. Que verdade é essa? 
CAROL: O momento de inspiração, que é um momento de verdade. Tento encontrar palavras para aquilo que é pré-linguagem: uma memória, uma emoção. O poema, ele mesmo, é uma busca por sua própria veracidade, um mapa de sua própria verdade. 
A poesia é muitas vezes descrita como o ponto mais alto de expressão de uma língua, e seu posto como poeta laureada sugere uma conexão entre escrita e nação. Isso é algo que faça parte do modo como você pensa a poesia? 
CAROL: Os melhores poetas de qualquer país devem ter uma conexão nacional. Não como um dever, um plano, mas como uma progressão natural de seu papel como integrante de uma certa comunidade para o de poeta. Algumas pessoas serão convocadas pela poesia, mas elas têm que vir antes do ordinário. 
Não há para você uma separação clara entre fala ordinária e linguagem poética? 
CAROL: Sim, eu vejo uma separação, mas acho que qualquer linguagem que o poeta bota num poema vira poética, porque está no poema — um bom poema, é claro. Há muito discurso ordinário em “The Waste Land”, por exemplo, mas essas frases se transformam ao tornar-se parte dessa grande obra poética de T.S. Eliot. Esse poema foi uma grande influência para mim, sua técnica de colagem, de se apropriar do ordinário e torná-lo especial no ambiente do poema. Como os surrealistas, ou Picasso em seus primeiros trabalhos. 
Você leu em sua mesa na Flip um poema sobre a morte de sua mãe. A escrita pode ter um efeito de atenuar a dor? 
CAROL: Algumas experiências são muito dolorosas... Insuportáveis, talvez. Mas, eventualmente, pode emergir um poema sobre isso. Não é uma compensação, não torna a experiência melhor. O que faz, talvez, é oferecer algo que pode consolar outras pessoas. É um tipo de dádiva, mas não uma dádiva para si mesmo. É algo que pode ajudar um leitor. 
Muitas vezes se diz que, no limite, é impossível traduzir poesia. Poetas de outros países tiveram alguma importância em sua formação? 
CAROL: Quando eu tinha uns 17 anos eu li os trabalhos de Pablo Neruda, traduzidos do espanhol, e eles foram muito importantes para mim. Não os teria lido se não houvesse tradução. Tive a mesma experiência com Rilke. É essencial lermos poetas de outras línguas. E, se bons poetas fizerem a tradução, vão fazer algo diferente, mas ainda ligado ao poema original. 
Seus poemas são usados em escolas do Reino Unido. O que acha da presença de poesia em sala de aula? 
CAROL: É algo que nos remete à nossa primeira experiência da linguagem como um jogo, as rimas infantis. A poesia é a música da condição humana, nos explica o que é ser humano de uma forma pequena e bonita.


Um poema da autora, traduzido por Telma Franco Diniz



Over


I wake to a dark hour out of time, go to the window.
No stars in this black sky, no moon to speak of, no name
or number to the hour, no skelf of light. I let in air.
The garden’s sudden scent’s an open grave.
What do I have

to help me, without spell or prayer,
endure this hour, endless, heartless, anonymous,
the death of love? Only the other hours –
the air made famous where you stood,
the grand hotel, flushing with light, which blazed us
on the night,

the hour it took for you
to make a ring of grass and marry me. I say your name
again. It is a key, unlocking all the dark,
so death swings open on its hinge.
I hear a bird begin its song,
piercing the hour, to bring first light this Christmas dawn,
a gift, the blush of memory.



Fim

Desperto para uma hora escura e fora do tempo, chego à janela.
Estrela nenhuma no céu lúgubre, lua nenhuma, nenhum nome
ou número para esta hora, nenhuma lasca de luz. Deixo o ar entrar.
Vem do jardim o cheiro súbito de uma cova aberta.
Sem contar prece ou feitiço,

que mais tenho eu para me ajudar
a suportar esta hora, sem fim, impiedosa, inominável,
a morte do amor? Somente as outras horas –
a aura célebre dos lugares por onde você passou,
o grand hotel, inflamado de luz, que nos incendiou
naquela noite,

a hora que você levou
a tecer um anel de relva e se casar comigo. Digo seu nome
outra vez. É a chave que abre toda a escuridão,
e a morte  se escancara nas dobradiças.
Ouço um pássaro entoar seu canto,
perfurando a hora, para coar a primeira luz nesta manhã de Natal:
um presente, o rubor da memória.

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